ENSAIO - Contraproposta ao capitalismo: ter apenas o necessário para não ser um necessário
ENSAIO (Este escrito é – acredito
- meu primeiro ensaio filosófico, concebido por conta da conclusão do curso de
graduação em Filosofia em 2002. Mais tarde, em 2008, lidando com o mestrado em
Educação, acabei reeditando-o. Poderia muito bem reescrevê-lo, hoje,
entretanto, manterei a originalidade a fim de expor o processo temporal de
ideias minhas. Hoje eu daria o título “Contraproposta ao capitalismo: ter apenas
o necessário para não ser um necessário”).
CONTRAPROPOSTA À GLOBALIZAÇÃO: ter
apenas o necessário
O
texto que segue foi elaborado a partir de reflexões em aula (disciplina Espaço
e Tempo), da leitura de textos, artigos, livros... sobre a questão da
globalização e, sobretudo, das reflexões fora da sala de aula. Além de retomar meu
processo de estruturação da vida, também procurei observar o das outras
pessoas. Passei a pensar nos motivos, nossos motivos para viver. E como
conciliar tudo isso só num mundo? Bilhões de motivos e um mundo apenas. O que
poderia possibilitar a realização de todos? O que seria essa realização? O que
pode condicionar nossos motivos? Nesse sentido, o que me ajudou muito, foi a
leitura do livro (Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal) de Milton Santos, especialmente no que se refere à globalização, que
nos envolve, atingindo-nos de várias maneiras.
O que é o mundo? Quem é o Homem? Por
que é? Para que existe?... foram algumas das questões que me tiraram o sossego.
E ainda tiram. Afinal, às vezes parecia que uma explicava a outra, mas também
era possível inverter: o que vinha primeiro? Qual a causa do resto? E assim por
diante.
Porém, foi essa “confusão” que me
levou à busca de um princípio conciliador, a partir do qual eu poderia
compreender melhor a ordem das coisas e resolver alguns problemas. Seria como o
farol que orienta os marinheiros, indicando o caminho para chegar em segurança.
E nisso me envolvi mais ainda,
quando comecei a ver que vários filósofos também buscavam algo semelhante: a
milênios atrás, Tales de Mileto chegou a água como causa de todas as coisas que
existem; depois, Anaxímenes (e Diógenes) atribui ao ar essa causa; já os
Pitagóricos afirmavam que os números eram o princípio; Empédocles definiu a
água, o ar, a terra e o fogo como raízes de todas as coisas; seguindo,
Demócrito chega ao átomo e do movimento destes derivam todas as coisas;
Aristóteles chegou ao primeiro motor; Santo Agostinho atribui tudo a Deus;
Leibniz queria encontrar uma fórmula matemática para explicar tudo e parou nas
mônadas; Descartes nessa busca por um porto seguro, parou na razão; Hegel fala
de um movimento dialético eterno; Marx explica tudo a partir das relações de
produção; outros atribuem a linguagem a explicação de tudo.
Enfim, também procurei por este “farol/porto
seguro” que possibilitasse uma melhor compreensão do sentido da nossa
existência. Que pudesse ser a base para uma construção segura. À qual eu
poderia recorrer para verificar o que é vital ou não.
Muitas vezes, já me coloquei como
observador de diferentes formas de viver. Com isso, quero me referir as classes
sociais, as diversas culturas, aos desejos nas diferentes fases da vida, aos
“estados de vida” (matrimônio, solteiro, padre ou freira), algumas religiões e
Igrejas etc. Enfim, por que existe tanta diversidade? O que provoca tudo isso?
Será que a “resposta” não é anterior? Independentemente das diferenças, digo,
das diferentes formas de viver? Aliás, muito mais simples do que imaginamos
e/ou pensamos? Muito mais perto (dentro) do que supomos?
Enfim, cheguei à seguinte
alternativa: ter o necessário/básico e ser auto controlador para não ter, nem
querem demais. E ajudar os outros para que também tenham este básico. Nisso
consiste nossa existência e para essa consciência deverá tender nosso empenho.
Definindo um pouco melhor o conceito
de básico digo que se refere simplesmente as coisas elementares, necessárias e
suficientes para subsistência material como: alimentação e abrigo.
E o sentido para a vida é justamente
o controlar-se sobre o suficiente e necessário, o que implica a renúncia aos
excessos. Além desse autocontrole, também dará mais sentido à nossa vida,
ajudar os outros nessa busca do apenas necessário.
Essa “ideia prática” está voltada
para o todo, o universal, pois se olharmos a partir de particulares e/ou
individualidades encontraremos inúmeras limitações porém, se aplicarmos às
pessoas em geral, constataremos sua veracidade. E é no universal que precisamos
nos basear. Afinal, todas as pessoas querem e precisam viver; e como conciliar
tudo isso? Questão também fundamentalmente relacional, ou melhor, da relação
entre as pessoas e a natureza (não entra em questão aqui a relação com as
coisas, pois estas são acessórios, sem os quais até seria melhor).
Recuperando o processo
histórico da moral, é possível perceber
que vários povos primitivos tinham muito forte a questão da partilha, ou seja,
numa tribo cada um trabalhava e era responsável pelo todo e, por assim dizer, o
todo era responsável por cada um. A moral dizia que o bom era aquilo que
alimentava a união da tribo. Mais tarde, como consequência das disputas (guerras)
entre tribos e/ou povos, surgem os prisioneiros que devem servir seus donos,
possibilitando o acúmulo de alimentos e gerando a diferenciação entre membros
da própria tribo, ou melhor, o que antes era produzido pela tribo e distribuído
entre todos da mesma foram, não vigora mais.
Com
o surgimento dos feudos, essa “diferença de classes” aumenta mais ainda. Quando
os feudos começam a ser substituídos pelos burgos, a diferença entre classe se
mantém, porém, muda a relação, isto é, os trabalhos não mais são escravos, mas,
a força de trabalho passa a ser comprada. Esse sistema econômico-social impõe
uma necessidade objetiva: que o capitalista compre a força de trabalho do
operário por um salário e o explore gerando a mais-valia (produção de um bem
com valor muito superior ao que é pago pela sua produção).
Rousseau já questionava a cultura e
a própria civilização, percebendo que o homem tornara-se mau e injusto, o que
ele não era em seu estado natural. Rousseau afirma no Discurso sobre a Desigualdade que a alma humana - a exemplo da
estátua de Glauco que o tempo, o mar e as tempestades desfiguraram - é alterada
no seio da sociedade por mil causas continuamente renovadas, pela aquisição de
uma grande quantidade de conhecimentos e erros, pelas mudanças ocorridas na
estrutura física e pelo contínuo choque das paixões, também, por assim dizer,
mudou de aspecto a ponto de se tornar quase irreconhecível. E, no lugar de um
ser guiado por princípios fixos e imutáveis, no lugar daquela celeste e
majestosa simplicidade que o seu criador nela havia impresso, nada mais encontramos
do que o contraste entre a paixão que pensa raciocinar e o raciocínio em
delírio.
Isso posto, é possível verificar
que, em geral, as pessoas continuam afastando-se do básico, porém é urgente a
tomada de consciência de que, quanto mais se afastarem mais longe de si
estarão. Inclusive, até mentalmente parece que não nos é permitido “recuar”, ou
melhor, para ser feliz é preciso aceitar o que está dado e, no mínimo,
continuar avançando.
Milton
Santos (2000), já nos alertou em relação a tirania do dinheiro e da informação,
que fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais
características da época e, ao mesmo tempo, busca conformar segundo um novo ethos as relações sociais e
interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A competitividade, sugerida
pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais
facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala.
E, só me libertando desse
condicionamento, consegui pensar algo mais universal e a partir do Homem
enquanto “ser aí”, que quer se realizar e precisa viver; cada um, e não somente
eu e/ou você.
Descartes queria chegar a um
fundamento seguro para explicar a existência, por isso foi removendo tudo que
era transitório, até chegar no ergo sun
(penso, logo existo) ou, verificou que simplesmente existia porque estava
pensando. Praticamente, percorri o mesmo caminho, libertando-me de tudo que é
desnecessário par que todos possam viver dignamente, chegando ao necessário/básico
como fundamento (pressuposto) para construir a existência.
Eu quero viver, ser feliz, me
realizar... você também, nossos pais também, o vizinho também e assim por
diante. Todas as pessoas querem e precisam viver – repito – e para isso ser
viável, oque de fato é indispensável e o que é dispensável? Você já se
interrogou sobre isto? Pensemos em nossa sociedade: qual a necessidade vital
dos esportes competitivos, por exemplo? Dos meios de comunicação social? Das
máquinas? Das armas? Até da Escola e da Igreja? Até mesmo daquilo que nos abriga:
por que tanto luxo e/ou vaidade? E dos alimentos, quanta coisa supérflua. E o
dinheiro então...
Conforme Milton Santos pode-se
afirmar que o mercado passou a criar a necessidade para depois oferecer o
produto que a satisfará, ou melhor, as empresas hegemônicas produzem o
consumidor antes mesmo de produzir os produtos. Ele ainda afirma que esse
período técnico-científico da historia permite ao homem não apenas utilizar o
que encontra na natureza; novos materiais são criados nos laboratórios como um
produto da inteligência do homem e precedem a produção de bens; antes utilizávamos
apenas os materiais que estavam a nossa disposição, mas, a partir de agora
podemos conceber os objetos que desejamos utilizar e então se produz a
matéria-prima necessária para sua fabricação.
Que mundo estamos construindo? Ou
seria melhor perguntar que pessoas esse mundo está criando? Em vez de
perguntarmos por que estamos no mundo, precisamos perguntar para que o mundo
precisa de nós. Cada vez mais as pessoas estão perdendo a consciência da vida.
E, cada vez mais cedo, rendem-se ao que está dado. Como já dizia anteriormente,
parece que não é possível voltar, olhar para traz, recuar. Parece que passamos
por uma lavagem cerebral. Milton Santos fala do pensamento único, produzido
pela tirania do dinheiro e a tirania da informação. Para ele estas tiranias são
os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado; sem o
controle dos espíritos seria impossível a regulação pelas finanças.
Por que criamos tanta coisa? Para
quem mesmo isso é criado? Na minha análise, percebo que muito é criado para
facilitar a vida (de quantos?), outra parte é criada para pesquisa, outra pelo
poder, para diversão etc. Só que a grande maioria das coisas é criada em cima
do que já fora criado antes, muitas vezes para superar o anterior ou, o que não
aparece tão claramente, muita coisa é criada por necessidade da própria criação
anterior e, nesse caso, cria-se por criar ou, diria até, parece que a criação
tem o controle do que devemos criar.
Conforme Milton Santos, até a
segunda guerra mundial tínhamos alguns objetos em torno de nós, os quais
comandávamos. Atualmente, meio século depois, o que há em torno é uma multidão
de objetos, todos ou quase todos querendo nos comandar; objetos carregados de
ideologia por homens do marketing e do design ao serviço do mercado.
Por exemplo: antigamente, todos
locomoviam-se caminhando ou correndo, depois provavelmente, começaram a usar
animais, mais tarde o barco (tronco), depois a criação da roda revolucionou e a
partir dela tudo começou de novo, ou seja, parece que a roda começou a ordenar
o que poderia ser construído a partir dela: primeiro, transportava-se com roda,
depois surgiu o carrinho de mão (bem rudimentar), depois a carroça, a bicicleta
etc, até surgir o “motor”, que passou a dar as ordens do que deveria ser
criado. Hoje até voamos devido ao motor (e outras técnicas), começamos a sair
do nosso planeta...
Marx já havia definido isto como materialismo histórico: os seres
humanos, para sobreviver, precisam se alimentar, vestir, abrigar e atender
outras necessidades básicas. Portanto, produzir essas coisas é uma tarefa que
não pode ser evitada. Mas, quando os meios de produção se desenvolveram além do
estágio primitivo, ou seja, produzir para subsistir, tornou-se do interesse dos
indivíduos especializar-se em algo, por exemplo, na tecelagem. E isso tornou-os
dependentes uns dos outros. Assim, a produção dos meios de vida tornou-se uma
atividade social e já não é apenas uma tarefa individual. Dentro dessa
dependência mútua, a característica definidora de cada indivíduo é sua relação
com os meios de produção. O que, por sua vez, determina toda mudança social,
isto é, o desenvolvimento dos meios de produção condiciona as mudanças sociais.
Assim como os meios de produção estão num constante processo de mudança, também
a relação das pessoas com eles e entre si seguirá mudando.
Para ilustrar esta questão Marx cita
o fato de as cidades terem crescido às margens dos rios e do litoral quando o
transporte da matéria-prima ainda era feito, sobretudo, por barcos e quando as
fábricas ainda dependiam da força hidráulica. Isso mudou quando surgiu o trem a
vapor, ou seja, as cidades começaram a crescer próximas das fontes de
matéria-prima e/ou seus mercados.
Considerando a teoria marxista, do
materialismo histórico, evidencia-se a necessidade de termos consciência do
nosso entorno, ou melhor, de percebermos o que nos envolve e, muitas vezes, nos
condiciona. Somente assim, será possível ultrapassar o dado como única verdade
e começar a ver a realidade com outros olhos. Nesse sentido convém recuperar a
velha história da Águia e da Galinha (será que é do Leonardo Boff?): um
camponês achou um ovo e o levou para que uma galinha o chocasse. Semanas depois
nasce algo que acaba se criando com os demais pintainhos. Assim, passa a fazer
o que todos fazem. Certo dia o camponês recebe uma visita que logo vê aquela
águia entre as galinhas. Admirado, o visitante inicia um interrogatório... Enfim, o camponês é convencido de que o lugar
da águia é outro, inclusive para o bem das galinhas. Assim, acaba levando a
águia para uma montanha de onde ela pode avistar outra águia. Passado algum
tempo de observação, iniciam-se as tentativas para imitar sua semelhante, até
perceber que ela pode fazer o que a outra faz e partir num voo sem volta.
Então?
E a minha identidade? Quem a constitui ou condiciona? A questão não é querer se
identificar com o símbolo mais importante, ou seja, a águia, o que inclusive
representa um condicionamento do qual é preciso ter consciência. A questão é
constituir nossa identidade de ser humano, inteligente e em relação (comigo e
com o outro (ser humano, natureza, transcendente...)). Identidade minada pela
globalização, que não visa ao bem de todos, mas, ao bem de alguns.
Enfim, será que vivemos melhor do
que nossos antepassados? Será que a vida melhorou? Para quem? Para quantos? Por
que mesmo tudo isso foi criado? Atualmente quem está dando ordens para nós?
Será que é a biogenética? O que passaremos a criar sob as ordens dela? Para
quê? Para quem? E, no fim das cotas, perceber que a vida dos homens das
cavernas era tão digna, ou até mais, quanto a nossa?
Parece que fazemos tanta coisa, mas
se considerarmos o apresentado, percebe-se que muitas criações/invenções são
desnecessárias. Nem parece que o Homem é o ser racional desse mundo.
Aliás, conforme a ideia do
necessário/básico, cada vez mais nos afastamos da vida. Da vida enquanto
natural, possível, digna e desejada por todos. Recuperando: o necessário/básico
é como que o eixo de equilíbrio, o ponto arquimediano a partir do qual poderemos
mover o mundo, ou seja, torna-lo mais humano. Isso sim seria “dominá-lo” de
forma responsável, habitando-o de forma que todos tenham condições dignas para
viver.
O nosso desafio é chegar a esse necessário/básico,
manter-se nele e ajudar aqueles que estão afastados. Uns precisam voltar e
outros avançar. Controlar-se nisso requer muita coragem, responsabilidade,
maturidade ou como diriam os psicólogos: integração afetiva. Inclusive, os
imaturos são os que mais se afastam do básico com a intenção de encontrar a
felicidade através de atalhos. E quanto mais longe, mais coisas supérfluas
geralmente usarão. Creio que seja muito mais difícil voltar (para os que têm
muito), do que avançar (aqueles que nem tem o básico). Porém, a maturidade só
aparece quando se está no básico, isto é, não buscar logo e sempre mais.
Alguns
até tem muito e são felizes, afinal, dinheiro e/ou riquezas também traz felicidade.
Só que, certamente, estes seriam tão satisfeitos (ou mais) se tivessem
simplesmente o básico e ajudassem os outros a tê-lo também.
Tércio Jung
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