Crônica: ENTRE JOÃOZINHO E HABERMAS

 

ENTRE JOÃOZINHO E HABERMAS

            - professora! E o que que a senhora achou da minha redação?

- Joãozinho, a tua redação está muito boa; fostes muito criativo e escreveu um texto muito bonito, cheio de detalhes, com muitos personagens, com um começo – meio – fim, com sujeito e predicado, caprichou inclusive na letra, mas, tem uma questão que podemos melhorar... já te explico melhor: em vez de tu escrever nós fomos pescar tu escreveu “nós foi pescar”, “eles vai limpar os peixe”, “nós comeu tudo”... ou seja, como tua professora de português, já posso te adiantar - pois vais aprender seriamente a conjugação verbal, lá pela quinta e sexta série - que podes começar a cuidar um pouco mais dos verbos na tua gramática.

            - Mas professora, minha mãe também fala assim e meu pai e eu sempre entendemos ela. Inclusive, ontem ela disse pro pai: “nós não pode esquece da entrega de boletim semana que vem”.

            - Ok Joãozinho, que bom que teus pais lembram-se da entrega de boletim, e, entendo perfeitamente que vocês se entendem falando desta forma. Digo-te que tenho dois tios que também falam assim: “ontem nós foi no bar”, “amanhã nós vai no mercado”... Entretanto, Joãozinho, aqui nós estamos numa escola e tu já sabe que na escola os professores precisam ensinar o que é o correto.

            - Mas meus pais sempre falaram assim e se entendem com todo mundo. Como eles escrevem, eu nem sei, professora, pois só vejo a mãe escrevendo quando ela faz a lista do mercado. Até já deu problema na lista das compras; acho que a mãe anotou lâmpada e meu pai não sabia o que era; ouvi ele dizendo que aquilo ele conhecia por “bico de luz”.

- Te entendo Joãozinho. Se teus pais/vocês se entendem está maravilhoso. E eu também entendi o que tu escreveste na redação, mas, a forma como escrevestes, ou seja,“na língua da escola”, gramaticalmentea conjugação dos verbos que usaste, não está totalmente correta. E não fui eu que inventei isto, Joãozinho!Quando eu tinha tua idade, também já comecei a aprender a conjugar os verbos, ou seja, quero te dizer que a gramática é um conteúdo antigo de português. Inclusive, ontem terminei de ler um livro que apresentava agramática - que eu aprendi e que tu vai aprender –sendo estruturada em conteúdo de escola já em 1536, pelos portugueses de Portugal.Quase no mesmo ano em que os portugueses invadiram o Brasil.

            - e por que eu tenho que aprender um conteúdo tão velho, professora?

            - Ha, Ha, Ha! Esta é uma pergunta muito boa Joãozinho. Mas, o mais importante não é o fato da gramática ser velha, mas, que ela tem uma história, ou melhor, não foi inventada de uma hora para outra, mas, levou tempo para ser construída. E não foi uma pessoa, sozinha numa pescaria, que inventou a gramática; com certeza muitas pessoas se preocuparam, pensaram, pesquisaram, debateram, corrigiram... até chegarem num acordo, numa gramática que ainda hoje aprendemos. Imagina, Joãozinho, quantas pessoas já estudaram esta mesma gramática que tu está apenas começando a aprender.

            - e será que, quando eu tiver filhos, professora, eles também vão aprender isto?

            - Com certeza, Joãozinho! Para vivermos juntos, em sociedade, precisamos conversar com os outros. Destas conversas surgem conteúdos importantes, que são escritos em livros – se transformam em conteúdos de aula - para que outros também aprendam e os usem em sua vida. Aliás, Joãozinho, teus pais se entendem porque os dois falam – e escrevem – em português, mesmo que tenha alguns erros gramaticais. Mas, imagina se teu pai falasse alemão e tua mãe não soubesse alemão?

            - ah sim, professora! Minha vó fala alemão; e quando ela quer dizer algo para meu pai, sem que minha mãe e eu entendamos, ela fala ou escreve em alemão.

            - Viu Joãozinho? Como a fala e a escrita – conteúdos velhos de português - são importantes em nossas vidas? E, como tua professora de português, preciso te dizer que o correto, gramaticalmente, seria Joãozinho: “...sem que minha mãe e eu entendamos...”.

            - Está bem, professora! Já que levaram tanto tempo para inventar esta tal de gramática, que tantos já estudaram e que nos ajuda na comunicação com os outros, quero aprendê-la também.

            Enfim, de Joãozinho a Habermas.

            Utilizando o enredo – diálogo entre Joãozinho e sua professora – para preparar o terreno para o plantio da seguinte tese: Joãozinho fala e escreve, enfim, se comunica tranquilamente através da língua portuguesa, entretanto, a professora, sabedora da gramática portuguesa, percebe que há erros na escrita, ou melhor, na conjugação verbal de Joãozinho. A gramática, enquanto uma tradição científica, institucionalizada, de fala e escrita, fornecem elementos à professora para que disseque a estrutura da escrita/redação de Joãozinho e aponte os erros a serem corrigidos, ou seja, indica a questão que precisa/pode ser melhorada na gramática de Joãozinho.

Ainda na elaboração da tese – de Joãozinho a Habermas - partindo do pressuposto que Habermas está debruçado sobre o projeto de uma teoria social, ou, de uma ciência social,pode-se afirmar que - assim como a professora dispõe da ciência/tradição da gramática para analisar a estrutura da redação de Joãozinho – Habermas está provocado em analisar a estrutura da racionalização social, ou melhor, da coordenaçãodos planos da ação dos indivíduos vivendo e convivendo no coletivo a partir da linguagem.

            Como a gramática possibilita à professora fazer uma análise estrutural da redação de Joãozinho, apontando em que parte deve haver melhorias, a Teoria do Agir Comunicativo, de Habermas, oportuniza uma reflexão crítica social, ou melhor, a luz de sua racionalização social torna-se viável identificar patologias sociais como, por exemplo, a razão funcionalista, apontada por Habermas como a grande enfermidade do mundo social. São os sujeitos que precisam assumir a coordenação de suas ações como atores do mundo da vida e ultrapassar a condição de objetos, imposta pelo sistema.

            Isto posto, podemos afirmar que Habermas procura superar uma mera teoria crítica, e com sua obra da Teoria do Agir Comunicativo desenvolve uma posição de “realismo metacrítico” pois, vai além da postura crítica abrindo e solidificando/fundamentando um caminhoalternativo. Alternativa baseada numa antropologia positiva, que vem somar-se á uma teoria social, almejada por ele desde o princípio. Antropologia positiva e real, pois parte da vida e do convívio cotidiano das pessoas que existem no coletivo e comunicam-se constantemente, ou seja, precisam coordenar seus planos de ação em sociedade, logo, superar a consciência individualistae fomentar a consciência coletiva/social.

            Habermas chega a este diagnóstico não por acaso, mas, graças a sua “gramática social”, ou seja, assim como a professora de português, conhecedora da gramática, soube identificar a parte fraca na redação de Joãozinho, assim Habermas, intensamente envolvido com o paradigma da linguagem, soube identificar a parte fraca do mundo da vida, despertando para uma metateoria da ciência social, capaz de identificar as patologias sociais, da mesma forma como a professora soube e pôde apontar o que precisava de reforço na gramática de Joãozinho.

A capacidade comunicativa implica também num domínio pré-teórico de certas pressuposições que acompanham o entendimento linguístico, conforme Habermas. Tais pressuposições têm um caráter similar ao das regras gramaticais, que o individuo - no nosso enredo inicial, o Joãozinho – utilizou na redação e utiliza ao falar e que nem por isso lhe são conscientes. Portanto, da mesma forma como o Joãozinho foi capaz que utilizar as regras gramaticais (quase todas corretamente), mesmo sem dominá-las reflexivamente, assim também os sujeitos capazes de fala e de ação fazem uso de certas pressuposições pragmáticas ao utilizarem a linguagem voltada ao entendimento. Esse saber pré-teórico, que serve ao entendimento linguístico, pode ser reconstruído racionalmente – como Habermas se propõe – numa perspectiva universalista, da mesma forma como se reconstroem as competências universais relativas à gramática da língua.

 

   Tércio Inácio Webler Jung 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Visita dos Magos e minha visita

crônica - BOLSONARISMO x JAIR