artigo: AGIR COMUNICATIVO E AGIR LEGISLATIVO

 

AGIR COMUNICATIVO E AGIR LEGISLATIVO



RESUMO

Habermas conseguiu consolidar uma teoria social, esta concebida e entendida como “processo comunicativo de entendimento entre as pessoas”. E a partir disso, nós procuramos consolidar um “sentido” de “legislação cidadã” fundada numa perspectiva intersubjetiva e cooperativa, promotora de entendimentos entre as pessoas e de mais igualdade.

Palavras-chave: leis; cidadãos; cooperação

ABSTRACT

Habermas managed to consolidate a social theory, conceived and understood as a “communicative process of understanding between people”. And from that, we seek to consolidate a “meaning” of “citizen legislation” based on an intersubjective and cooperative perspective, promoting understanding between people and more equality.

Keywords: laws; citizens; cooperation

 

1 INTRODUÇÃO

Neste escrito, procuraremos apresentar as possíveis contribuições da teoria habermasiana para pensar e repensar o “agir” e o “sentido” do Poder Legislativo situado no mundo humano, no nosso mundo comum, no qual podemos viver e conviver com menos indiferença e mais igualdade.

Partindo da mudança de paradigma proposta por Habermas – do paradigma da filosofia da consciência ao paradigma da filosofia da linguagembuscaremos fundamentar/propor a “validez social” do fazer Legislativo (e dos legados jurídicos) como um “fazer” inserido num movimento histórico-social, logo, sempre situado e “entre pessoas”, visando um mundo mais solidário.

Concebido, por Habermas, como um agir comunicativo, este “fazer” se situa no âmbito de uma razão prática intersubjetiva, que vai além da razão funcionalista e instrumental (do sistema/do “para algo”), potencializando uma conduta mais cooperativa (no mundo humano/no “entre nós”). O agir comunicativo, conforme a nossa hermenêutica da teoria habermasiana, orienta para um pensar e fazer “entre pessoas” (logo, social e político) e não simplesmente “para algo” administrativo-burocrático e/ou pior, no caso do tema em tela, focando excessivamente, atingir metas (re) eleitoreiras.

De nossa parte, alimentaremos a expectativa de que o encontro teórico com Habermas, em um diálogo cooperativo-hermenêutico-histórico, favorecerá um enfrentamento crítico e argumentativo das “razões, sentidos e linguagens” que embasaram/embasam o órgão legislativo brasileiro. Não na avidez de encontrarmos uma resposta definitiva e fechada, mas de provocarmos um processo interativo qualificado e ampliado, de entendimento cooperativo e público a seu respeito.

O modo como Habermas compreende a coordenação da ação do indivíduo na sociedade - a partir de uma racionalidade mais ampla, que considera além do elemento cognitivo-instrumental (mundo objetivo), também o elemento prático-moral (mundo intersubjetivo/social) e o elemento estético-expressivo (mundo subjetivo/personalidade) - é de fundamental importância para refletirmos sobre a "cultura legislativa" enquanto uma necessidade humana, ou seja, de ordenamento social, coletivo e cooperativo entre os cidadãos (e, por óbvio, entre seus representantes eleitos).

No pensamento habermasiano, existe uma vital correlação entre racionalidade, linguagem (processo interativo e formação individual e social) e ação, com implicações estruturadoras e desdobramentos significativos, a nosso ver, também para o campo do legislativo.

Nesta perspectiva, buscaremos apontar aqui, para processos legislativos-comunicativos ampliados, que não se restringem a burocracias, leis frias, técnicas processualistas ou até ritualismo mecânicos, mas, fomentadores de um “agir intersubjetivo” na busca do entendimento entre o Poder Legislativo, tutelado pelo Estado, e os cidadãos que formam/são este mesmo Estado.

Que a “Lei” e a cultura legislativa já galgaram o seu espaço na história e no mundo humano, disto não há dúvidas. Entretanto, o “sentido” e as “linguagens” que elas nutrem atualmente - e/ou deveriam nutrir – geram, também, insatisfação e intermináveis debates. Também não restam dúvidas de que elas estão demasiadamente “norteando” seu modus faciendi para uma mecânica burocrática, estreitando-se num sentido operacional, instrumental, funcionalista, utilitarista e até mesmo privatizado.

Entretanto, a nossa proposta não é ignorar este “fazer e agir”, mas abarcá-lo num sentido ampliado, vivo e social, enfim, humano, ou melhor, um Legislativo que se funde na e a partir da vida dos cidadãos em sociedade.

E foi este desejo/sonho, em relação ao Legislativo, situado no mundo da vida (objetivo, social/intersubjetivo/e subjetivo), que nos encaminhou ao agir comunicativo de Habermas; à racionalidade intersubjetiva, geradora e potencializadora de um modus faciendisustentável”, de interações cooperativas e solidárias entre todos os cidadãos e cidadãs (e/ou seus/suas representantes eleitos/as).

Seguiremos a nossa busca “caminhando o caminho” histórico-social da constituição das “justificações entre pessoas” que validaram/validam “o agir e o fazer” do Legislativo a fim de compreendermos melhor as possibilidades do agir comunicativo-legislativo; este guardião, por excelência, da cultura legislativa, mas também, guardião de processos de construção de “Leis” “orgânicas/vivas”, situadas e inseridas no momento/movimento (na história) e no espaço/contexto social atual e real.



2 O AGIR COMUNICATIVO DE JÜRGEN HABERMAS

Habermas, em sua “teoria comunicacional da sociedade”, fomentou uma racionalidade comunicativo-intersubjetiva à medida que percebeu que o paradigma da consciência (razão centrada no indivíduo) - absolutizada por vários teóricos - não era suficiente para compreendermos a coordenação da ação das pessoas em sociedade.

Assim, em várias de suas obras, ele vai tentar reabilitar a natureza libertadora e emancipatória da “razão intersubjetiva”. Acreditando que a modernidade é um projeto inacabado, e que a própria razão constitui um conceito com potencial libertador, ele introduz o conceito de racionalidade comunicativa, mais abrangente, em substituição ao conceito, limitado em seu entender, de razão instrumental, mais propriamente orientado para fins utilitaristas (tese já apresentada no pensamento weberiano: ação racional com relação a fins).

A racionalidade comunicativa, de cunho intersubjetivo e interativo, envolve tanto a dimensão pessoal quanto a dimensão cooperativo-social, “empoderando-se”, assim, como processo de construção de entendimentos “entre as pessoas”, isto é, numa perspectiva diferente da construção de projetos isolados e restritos “para algo e para poucos”.

Habermas teve como projeto de vida (e não só teórico) superar contradições entre métodos materialistas (Marx) e transcendentais(Kant) em torno de uma nova teoria crítica da sociedade - para incorporar a teoria social marxista contemplando as posições individualistas da razão crítica – analisando, de um lado, os movimentos/fluxos entre os fenômenos sócio-estruturais-culturais com os da linguagem e, de outro, a estrutura econômica da sociedade contemporânea com a sociedade enquanto parte do mundo da vida.

Assim, procurando fundamentar uma teoria social ampliada (racional, de interação e de ação), Habermas vai além da Teoria Crítica de seus antecessores como Adorno, Horkheimer e Marcuse. Neste ínterim ele “intuiu” que as mudanças no mundo contemporâneo não ocorrerem diretamente no campo social ou cultural, mas, necessitam, antes, passar pela condição racional e de linguagem, ou melhor, de entendimentos entre as pessoas.

Para além da crítica da razão instrumental, amplamente fundamentada pelos mestres frankfurtianos, em especial nos estudos desenvolvidos por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, Habermas entende que o sentido de emancipação do sujeito que sempre “é” em sociedade - tal como já problematizado por Marx e, também, por Adorno e Horkheimer - necessita ser refundado a partir de um novo paradigma de racionalidade. Assim, ele identifica o reducionismo cognitivo-instrumental, a que foi submetida a razão moderna, e propõe uma concepção de racionalidade mais ampla, ou melhor, da racionalidade comunicativa.

Habermas tematiza criticamente, a racionalidade moderna, baseado em autores que o antecederam, como, por exemplo, Lukács, o qual já denuncia que nós compreendemos e apreendemos as relações e vivências sob a forma de coisa, como se fossem apenas parte do mundo objetivo; entretanto, as relações e vivências integram o mundo social partilhado e o mundo subjetivo individual. Isto está/é arraigado de maneira sistemática que acaba por afetar a práxis dos sujeitos, além da forma de pensar e a própria forma de existir (HABERMAS, 2012a, p.612).

A dominação do ser humano sobre a natureza, desmantelando sua intenção própria de descobrir “a verdade” (HABERMAS, 2012a, p.657), converte-se em dominação do homem sobre o homem, em mundo administrado em nome da técnica, abrindo espaço para a eclosão da colonização, promovendo uma sociedade de consumo e uma indústria cultural que avança sobre todos os domínios da sociedade. E, para Habermas, o diálogo intersubjetivo – a interação comunicativa - é a melhor possibilidade de enfrentamento e resistência diante de ideologias, políticas e governos pouco preocupados, muitas vezes, com os rumos da sociedade.

Intrigado, inspirado e desafiado, Habermas buscou, através de uma “teoria sociológica da ação” (2012a, p.XXI), fundamentar uma “razão intersubjetiva”, voltada para os processos/movimentos “entre as pessoas”, repercutindo diretamente no mundo legislativo. Racionalidade que concebe o sujeito como ser social/interativo, ou seja, considera a condição comunicativa/intersubjetiva/social das pessoas, mas também, a condição objetivo-cognitiva e a subjetiva/de identidade individual.

Diferentemente de seus colegas da Escola de Frankfurt, os quais adotaram uma posição pessimista perante a razão instrumental, Habermas investe numa teoria ampla da sociedade, que engloba a razão instrumental (2012a) como necessária, mas, que precisa ser superada no sentido de não subjugar a racionalidade da ação e a racionalização social (2012b).

O modelo de Jürgen Habermas, explicitado em sua teoria da ação comunicativa é de cunho filosófico, sociológico e político, na qual, embora esteja intimamente relacionado a uma teoria eminentemente linguística e comunicativa, nada impede que seja apresentada como uma potente estrutura de análise e compreensão da realidade social e organizacional onde as práticas sociais do mundo da vida pública e privada não são de exclusão, mas, ao contrário, de inclusão dos cidadãos que a formam.

Essa teoria permite analisar a sociedade como duas formas de racionalidade que estão simultaneamente em jogo: a racionalidade substantiva do mundo da vida e a racionalidade formal do sistema, mas onde o mundo da vida representa uma perspectiva interna como o ponto de vista dos sujeitos que agem sobre a sociedade, enquanto o sistema representa a perspectiva externa, como a estrutura sistêmica (a racionalidade instrumental e burocrática das instituições). Nessa ordem de ideias, Habermas também sustenta, em linhas gerais, que as sociedades contemporâneas são integradas por três meios ou mecanismos, quais sejam: o "dinheiro", como meio é institucionalizado através do "mercado"; o “poder” como meio é institucionalizado nas “organizações”; e a “solidariedade”, que é gerada em virtude de normas, valores e comunicação.

Habermas acredita que a reconciliação entre os mecanismos é possível por meio da organização do diálogo e com a introdução de um terceiro ator fundamental para a democracia, que é o cidadão de direitos. A racionalidade comunicativa visa conciliar conhecimentos técnicos e valores sociais, a fim de facilitar processos intersubjetivos, ou melhor, fomentar o entendimento entre todas as pessoas envolvidas. Dessa forma, dentro das organizações públicas ou privadas, o objetivo é evitar os atos de autoritarismo (“eu sou o representante eleito e por isso mando e decido”) ou de natureza técnica (“eu sou o especialista que sabe e tem que fazer isto”). Habermas propõe que as decisões sejam fruto do diálogo interdisciplinar e do conhecimento buscando no tratamento, mais humano, entre as pessoas, onde não tivesse a exploração do homem pelo próprio homem.



2.1 Racionalidade Comunicativa e o Legislativo

Indo também pelo caminho crítico-reflexivo - sempre acompanhado e interagindo com grandes teóricos e/ou suas teorias – Habermas percebeu que a razão, até então venerada e considerada a “redentora” do ser humano, na forma expressa por boa parte da tradição filosófica, é apenas uma parte da complexa condição do “humano sendo humanidade”. “Sendo” no sentido de movimento, de processo, “de ação e interação entre”, do que resulta que, o melhor ponto de apoio para uma teoria social seria/é o próprio movimento-processo-interativo entre as pessoas, este, inevitavelmente comunicativo.

Habermas partiu do pressuposto de que no mundo contemporâneo - e por que não, também do mundo do Poder Legislativo - requer-se uma reflexão que supere a razão subjetiva, para poder enfrentar, adequadamente, o problema da racionalização privada e caminhar na direção de uma racionalidade pública e cooperativa.

Mais do que um desafio, é um compromisso político-social o de criticar e superar o cientificismo positivista e técnico da racionalidade moderna, que alguns filósofos contemporâneos, entre eles Habermas, assumiram a partir de uma posição teórico-crítica que permite refundar pragmaticamente os pressupostos e princípios dos interesses da ciência moderna em sua hegemonia social, política, ideológica e histórica.

Hoje, a partir da razão comunicativa, questiona-se o domínio de uma ciência (e uma política) determinada por um controle tecnológico e econômico, que orienta a razão pela predominância do raciocínio instrumental e funcional, que evita e esvazia a interação entre aqueles que, ainda, participam.

A interferência do pensamento funcionalista nos sistemas de interação social gerou uma confusão que favoreceu a absorção de um conhecimento da realidade que deixa de fora, justamente, a alteridade no espaço de interação entre as pessoas, entre os cidadãos. A diversidade e a pluralidade dos sistemas sociais (o político, o econômico, o administrativo, etc), permanecem sob a regulação da racionalidade instrumental e funcionalista. Ao final, um tipo de racionalidade que induz meios tecnocientíficos, acaba se instalando no mundo sociopolítico, favorecendo um conceito de razão egoísta/privatizante, fomentadora de desigualdade e até mesmo da injustiça.

Uma teoria crítica dos fundamentos sociais e políticos desse tipo de sociedade, em seu desenvolvimento neoliberal e globalizante, é necessária para lidar com as reduções institucionais e institucionalizadas, realizadas pela razão econômica do capitalismo avançado na maioria das sociedades atuais.

Para isso, é necessário assumir a análise das estruturas gerais da Teoria da Ação Comunicativa em oposição às Teorias Neoconservadoras, que continuam aderindo a um conceito de racionalidade instrumental. Embora seja verdade que tenham significado um relativo avanço nas formas modernas de viver em sociedade, não é menos verdade que também acentuaram a incapacidade funcional de alcançar sistemas sociais mais equilibrados e articulados, onde os construtos da equidade social são compartilhados como princípios fundantes e integrantes da sociedade.

Muitas teorias vêm interpretando a "realidade social" a partir de uma visão inequívoca e reducionista, querendo impor normas e papéis, códigos e leis, que respondam a necessidades sociais estruturalmente condicionadas pelos princípios de ordem racional de grupos, setores, atores e instituições dominantes.

A pragmática comunicativa que Habermas propõe para o desenvolvimento democrático dos sistemas sociais sustentáveis, requer uma filosofia prática, uma moral cívica e uma cidadania discursiva, o que implica em cooperação entre aqueles que são eleitos para representar o povo, povo que forma o Estado. Mas o que se requer, então, é um grupo de legisladores capazes de raciocínio dialógico e argumentativo, de modo a criar o necessário consenso comunicativo e cooperativo, guiados pelas expectativas de justiça social para todos os cidadãos e cidadãs.

Assim, se a partir de uma perspectiva cognitivo-instrumental a racionalidade pode basear-se na confiabilidade do "fazer leis" que incorpora a eficácia dos resultados/fins a alcançar, já a partir de uma competência comunicativa, que tem na linguagem a sua própria realização, a racionalidade será intersubjetiva e cooperativa, sobretudo em relação à suscetibilidade de críticas ou de reivindicações de suas validades, ou seja, uma racionalidade sempre aberta e em movimento “entre as pessoas”, por isso capaz de dar “validez” social a todo e qualquer projeto Legislativo.

Para Habermas, o paradigma da linguagem é mais realista e humanamente confiável (inclusive, podemos afirmar, para o Legislativo), afinal ele só é tal paradigma na medida em que há interação com os outros, ações comunicativas que os situam histórica e socialmente, ou seja, situam o “sujeito sendo em sociedade”. Este paradigma baseia-se num conceito de “mundo vívido”, aberto e estruturado cooperativamente, que, por sua vez, está apoiado na prática de uma comunidade de linguagem e numa comunidade comunicativa-interativa.

Pode-se também dizer, aqui, que pela racionalidade comunicativa os cidadãos tornam-se capazes de (pensar) falar e de agir cooperativamente, sem discriminar e excluir, ou só usar os demais. Claro que o preconceito e a exclusão, preconceito, discriminação, etc, também existem e estão impregnados em muitas pessoas, entretanto, o “entendimento entre” ainda é o melhor processo para a conscientização em relação à equidade “entre as pessoas” e o começo de mudanças/transformações sociais (o que inclui a “Lei”/o Direito/o Legislativo).

O paradigma da linguagem fez brotar em Habermas a “intuição” de uma outra razão/racionalidade, qual seja, da razão procedural e comunicativa (intersubjetiva), o que se deveu a um distanciamento da concepção tradicional de que a linguagem era apenas um mero instrumento de manifestação da razão, logo, só um meio para ter acesso ao mundo das ideias, sede dos conteúdos do pensamento. Distanciamento que permitiu-lhe perceber que, aquela razão instrumental, não era “o todo” e que, também, era ingenuidade considerá-la o “norte” para orientar a sociedade.



2.2 Agir Comunicativo e Agir Legislativo

Mesmo que a busca original de Habermas tenha sido por uma teoria social, ou melhor, uma ciência social voltada para a ação dos sujeitos em sociedade, com validez intersubjetiva, ele acaba propondo a necessidade de mudança de paradigma para revermos/repensarmos todo o mundo da vida, o que fomenta, de forma direta, os debates a respeito dos processos, movimentos e legados do Poder Legislativo, especialmente, os debates referentes ao "fazer" do legislativo.

Considerando que na teoria do Estado, o legislativo (também poder legislativo) é um dos três poderes independentes (separação de poderes) ao lado do executivo (poder executivo) e do judiciário (poder judiciário), e que o Legislativo é responsável por construir e aprovar leis (legislação) em termos de conteúdo e forma, bem como controlar/fiscalizar os gastos do executivo, convém, a partir do paradigma da linguagem de Habermas, focado na racionalidade comunicativa, insistir numa concepção - dos três Poderes - menos privatizada e mais social, mais intersubjetiva e interativa com a comunidade, com os cidadãos do mundo comum, apesar de sua institucionalização representativa.

A separação de poderes é a distribuição do poder do Estado entre vários órgãos do Estado com o objetivo de limitar o "poder privatizante/funcionalista" e garantir a liberdade, a igualdade e uma maior participação do povo.

Com base no modelo histórico, é feita uma distinção entre os três poderes de legislação (legislativo), execução (executivo) e jurisdição (judiciário). O princípio da separação dos poderes tem suas origens nos escritos teóricos do Estado de John Locke e Montesquieu (Sobre o Espírito das Leis, 1748), que eram dirigidos contra a concentração do poder e a arbitrariedade no absolutismo. Curiosamente, parece que o poder judiciário não é um dos poderes na teorização de Montesquieu, mas, apenas uma função do Estado.

Analisando-se a questão sob a perspectiva histórica, percebe-se que foi a dura - e até mesmo cruel - experiência do absolutismo e a desconfiança nos magistrados dos reis que deram causa ao princípio da "separação de poderes".

Talvez por essa desconfiança, não prosperou a concepção hegeliana. Na Filosofia do Direito de Hegel, o poder executivo abrange a esfera judiciária. Coerente com a tensão entre universal e particular que perpassa sua filosofia, o poder Legislativo produz a universalidade (as leis), a partir do jogo das demandas particulares dos grupos e de interesses sociais. O poder executivo é guiado pelo universal (o conjunto de leis) para atuar na particularidade dos acontecimentos sociais, sancionando as leis do legislativo e demandando alterações nas leis existentes, quando julgadas defasadas ou incompatíveis com a realidade particular da época.

Passada a conjuntura histórica, na qual a concepção clássica de "separação de poderes" foi criada e solidificada, demonstra-se necessário, muitas vezes, repensar este paradigma/princípio institucionalizado, criado pelo conceito em perspectiva temporalmente adequada, vez que sua justificativa social, enquanto princípio, dependerá de seu atendimento às exigências da sociedade, ou seja, à melhoria do mundo comum e real.

Imprimindo mais intersubjetividade a esse tema, questiona-se a visão funcionalista a respeito do conceito de "separação de poderes", propondo a isso, uma visão mais cooperativa e ampliada acerca da afirmativa de que cada ramo do governo deve ficar restrito ao exercício do "poder" que lhe foi conferido.

Além do nível horizontal, de separação de poderes, entre legislativo, executivo e judiciário, pode-se identificar também, uma forma vertical de separação de poderes entre os governos municipal, estadual e o federal. Mesmo assim, apesar dessa separação e estruturação toda, ainda é notável a rendição, em grande medida, dos Três Poderes, por alguns poucos grupos, que acabam privatizando os mesmos em função de interesses pessoais e/ou de poucos, afastando-se cada vez mais da função social e cidadã dessas Instituições e institucionalizações.

Para Habermas, é a racionalidade instrumental e funcionalista (razão privada) que sustenta esse tipo de posicionamentos e atitudes. Racionalidade esta, que não cabe nem no Legislativo, nem no Executivo e nem no Judiciário.

Enfim, existe uma questão que sempre atormentou - e ainda atormenta - os teóricos políticos, qual seja: como assegurar o controle do exercício do poder governamental de tal modo que não seja possível, aos que o compõem, destruir os valores sociais para cuja promoção ele foi criado?

Aliada a essa inquietação, há aqueles que historicamente advogavam em nome do constitucionalismo e foram/são enfáticos em reconhecer o papel estratégico a ser desempenhado por uma estrutura governamental na sociedade. Contudo, a maioria está/fica atenta, também, ao fator fundamental de se limitar e controlar o exercício desses poderes.

Por fim, apenas para enfatizar, dentre todas as teorias políticas que visaram amenizar essa preocupação — relevância da função/limitação de poder — a doutrina da "separação dos poderes" foi a mais significativa, vindo a influenciar diretamente os arranjos institucionais do mundo social. Adquirindo, inclusive, o status de um arranjo que virou verdadeira substância no curso do processo de construção e de aprimoramento do Estado, este, que nem sempre esteve muito preocupado com o bem comum, com o diálogo e a interação comunicativa com todos os cidadãos e cidadãs.

É preciso então, fomentar a reflexão crítica-social e, para isso, a linguagem torna-se o meio que evidencia - por meio de ações orientadas para a compreensão e colaboração - uma racionalidade comunicativa que potencializa pessoas também preocupadas com o mundo comum. O mundo da vida já problematizado pela instabilidade social imposta por um sistema que reduziu o racional ao instrumental, leva à perda do sentido social, de modo que a racionalidade comunicativa, sustentada pelo paradigma da intersubjetividade dialógica, se torna válida para pontuar as questões do nosso mundo humano-social.

Com base no exposto, o diálogo intersubjetivo da racionalidade comunicativa, serve como fundamento emancipatório que pode resgatar e potencializar o sentido social do agir humano e por que não, do agir do poder legislativo. Assim, pode-se gerar um processo de criação de consciência coletiva que determina um projeto político sustentável, onde se estabelecem relações intersubjetivas que inspiram interesses sociais, construídos para fins mais justos e solidários.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos evidenciar que o agir do poder legislativo, também, se justificam e revitalizam socialmente, na medida em que buscam potencializar o seu modus faciendi a partir do agir comunicativo, ou melhor, nutrindo processos intersubjetivos/cooperativos na busca de “entendimentos entre as pessoas” – entre os Direitos individuais e coletivos - a respeito do mundo da vida (mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo/personalidade), indo muito além de um agir isolado, fomentado pela racionalidade funcionalista e pela razão instrumental. Não no sentido de descartar este, mas, de ampliar e humanizar o modo de pensar, agir e fazer.

Desta forma, na busca do avanço paradigmático, o Legislativo encontra na racionalidade comunicativa de Habermas um “caminho” promissor, digno de uma discussão pública; racionalidade que fomenta uma interação com a realidade e atualidade do mundo comum, provocando, como consequência desta tomada de consciência, a inquietação necessária para avançar na direção de um paradigma revitalizador do fazer e ser legislativo, indo bem além da mera representatividade.

A Lei se torna orgânica/vida na medida em que alimenta o entendimento e a equidade a respeito dos processos interativo-comunicativos que pulsam diariamente na vida política e legislativa. Não só a respeito dos procedimentos administrativo-burocráticos, mas, também, dos processos na construção cooperativa das leis, revitalizando continuamente as tradições culturais e os legados das normas legais, que foram/são histórica e coletivamente constituídos.

Mesmo que a “Lei” e o Direito não sejam algo natural, mas, algo planejado/intencional, ainda assim há vida fluindo intersubjetivamente, vida que se dá pela via comunicativa “entre as pessoas”. Vimos que Habermas evoca uma “razão social”, de consciência coletiva, segundo a qual, a comunicação pode seguir livre de coações, em processos interativos, o que, por sua vez, consiste na própria validez do processo que a construção de uma lei percorre. Essa perspectiva pressupõe que os representantes do povo, envolvidos no movimento interativo-comunicativo-social, possam fazer o mundo legislativo tocar a realidade do seu entorno/da sua comunidade humana.

Assim, o agir comunicativo se constitui numa estruturação/num processo intersubjetivo do fazer cooperativo das leis - que inclui o contraponto e muitos debates - indo além do reducionismo legalista e procedimentalista do fazer técnico-burocrático-ritualizado, muitas vezes, apenas uma “via” de atalho para alguns grupos.

Em outros e curtos termos podemos dizer que, não basta comprovar o agir Legislativo em modernas salas, gabinetes e com belos discursos, mas é preciso, também, justificá-lo socialmente.

Convencidos das potencialidades da teoria habermasiana, percebemos nela um “ponto de apoio” para movermos os debates sobre o agir Legislativo em direção a um sentido mais amplo: oportunizando a discussão pública sobre os legados legislativos, estimulando processos cooperativos no plano objetivo (fatos concretos), mas, em igual medida, no plano subjetivo (personalidade) e intersubjetivo (vida social), fluindo sempre pela via comunicativa entre sujeitos, ou melhor, entre cidadãos no mundo comum; promovendo também, a competência comunicativa das novas gerações, que serão apresentadas e inseridas na comunidade humana, comunidade com “Leis”; nutrindo condições favoráveis a uma interação crítica e construtiva com a própria cultura legislativa; que o poder Legislativo se volte mais para comunidade/o seu entorno a partir desta base interativo-social, libertando-se um pouco mais dos critérios de utilidade impostos pelo sistema econômico; que o mundo Legislativo incentive e promova a racionalidade comunicativa na construção e reconstrução dos legados das normas legais, estas que sustentam e precisam nutrir o mundo comum/o mundo social humano.

Enfim, o caminho trilhado nos levou ao entendimento de que o Legislativo se justifica e revitaliza, socialmente, na medida em que busca potencializar o seu “ser e fazer” a partir do agir comunicativo, ou melhor, nutrindo processos e movimentos comunicativo-cooperativos, buscando fomentar o seu sentido a partir de entendimentos “entre as pessoas” e não “para algo”. Insistindo sempre no agir e interagir comunicativo a respeito do mundo da vida (mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo), no qual nos encontramos como cidadãos.



REFERÊNCIAS



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